AFECÇÕES CIRÚRGICAS DA REGIÃO INGUINAL

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AFECÇÕES CIRÚRGICAS DA REGIÃO INGUINAL 

MALFORMAÇÕES NA REGIÃO INGUINAL 

As afecções congênitas da região inguinal correspondem, na sua maioria, a alterações dependentes da persistência de uma estrutura embrionária transitória conhecida como conduto peritônio vaginal no homem e conduto de Nück na mulher. Este conduto está relacionado à descida do testículo para o interior da bolsa testicular. Representam grande parte das intervenções cirúrgicas ambulatoriais do paciente pediátrico.

O QUE ACONTECE NA REGIÃO INGUINAL
Por volta da 4a semana de gestação surge, junto ao pólo inferior do rim primitivo, um aglomerado de células derivadas do mesênquima denominado blastema gonádico, que posteriormente se diferenciará em testículo. Entre o 1o e o 7o mês de gestação o alongamento crânio-caudal do embrião promove a migração do testículo para o escroto. Auxiliando esta migração forma-se uma prega peritonial denominada conduto peritônio vaginal.

Durante um período da vida embrionária há, portanto, uma comunicação do interior da cavidade peritonial com o escroto através do conduto peritônio vaginal (no homem) e conduto de Nück (na mulher). O conduto normalmente sofre obliteração ao final da migração testicular. A persistência parcial ou total do conduto peritônio vaginal é a condição que determina o aparecimento das patologias inguinais que serão apresentadas a seguir (Fig 1):

Fig 1 – Persistência do conduto peritônio vaginal e as diferentes afecções que ele determina no sexo masculino.

O fato de o testículo esquerdo terminar sua migração antes do testículo direito, parece explicar a maior freqüência de patologias dependentes do conduto peritônio vaginal e das distopias testiculares à direita.


HÉRNIA INGUINAL

CONCEITO INICIAL
A hérnia inguinal da criança se faz pela persistência do conduto peritônio vaginal. Difere da hérnia inguinal direta do adulto, resultante da fraqueza da parede posterior do canal inguinal.

COMO SE FORMA A HÉRNIA INGUINAL INDIRETA
A persistência total ou parcial proximal do conduto peritônio vaginal permite a saída de conteúdo intra-abdominal para a região inguinal ou ínguino-escrotal.

É MUITO COMUM
A incidência da hérnia inguinal é de aproximadamente 3% nas crianças nascidas a termo e de 8% nos pré-termos. Acometem preferentemente o lado direito mas podem ser bilaterais. Os meninos são mais comumente afetados do que as meninas, na proporção de 9:1.

MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS
A hérnia inguinal surge como um abaulamento na região inguinal ou ínguino-escrotal, relacionada ao aumento de pressão intraperitoneal (choro, esforço da tosse e evacuação, etc), reduzida com facilidade na maioria das vezes (Fig 2 e 3).


Fig 2 – Hérnia ínguino-escrotal à direita.

Fig 3 – Hérnia inguinal bilateral em menina.

Quando não há conteúdo herniado no momento do exame físico, deve-se procurar evidência da persistência do conduto peritônio-vaginal. Para tal deve-se tracionar delicadamente o testículo e deslizar o dedo indicador de forma a palpar o funículo espermático contra o osso púbis. O aumento do volume do funículo e o deslizamento próprio dos folhetos do conduto peritônio-vaginal produzem a sensação de se estar palpando um dedo de luva de seda (Sinal da Seda) (Fig 4).



Fig 4 – Palpação da região inguinal a procura do conduto peritoneo-vaginal no menino (A) e do conduto de Nück na menina (B)

FICANDO COMPLICADO
A impossibilidade de reduzir o conteúdo herniado, associado ao quadro clínico de obstrução intestinal (dor em cólica, náuseas e vômitos e parada de eliminação de gases e fezes), caracteriza a hérnia inguinal encarcerada. A incidência de encarceramento é maior quanto menor for a criança, sendo que em prematuros e lactentes pode chegar a 30%, enquanto nas crianças maiores é de aproximadamente 15% (Fig 5).


Fig 5 – Alça intestinal encarcerada com pequeno foco de sofrimento vascular.

Uma vez que a alça intestinal encarcera, ocorre inicialmente diminuição do retorno venoso e linfático e posteriormente do fluxo arterial o que determina sofrimento vascular com necrose da alça herniada. Esta condição é conhecida como hérnia inguinal estrangulada e caracteriza-se clinicamente pelo quadro de obstrução intestinal agravado com sinais de peritonite (febre, toxemia, irritação peritonial) (Fig 6).


Fig 6 – Necrose intestinal em hérnia inguinal estrangulada

No sexo masculino o conteúdo encarcerado mais frequentemente é o intestino delgado. Além da possibilidade de necrose intestinal, a alça herniada pode comprimir o cordão espermático e provocar sofrimento vascular do testículo inclusive com sua necrose (Fig 7). No sexo feminino é o ovário que encarcera na maioria das vezes.


Fig 7 – (A) Necrose testicular devido a hérnia inguinal encarcerada. Compare com o testículo contra-lateral normal (B).


COMO FAZER O DIAGNÓSTICO
O diagnóstico é clínico seja pela referência dos pais ou pela observação de abaulamento na região inguinal ou ínguino-escrotal relacionado aos esforços. Na criança maior, colaboradora, a tosse ou a prensa abdominal forçada podem deflagrar o abaulamento inguinal ou ínguino-escrotal. O conduto peritônio vaginal pérvio pode, eventualmente, ser demonstrado pela ultrassonografia, mas o insucesso deste exame não descarta o diagnóstico de hérnia (Fig 8).


Fig 8 – Persistência completa do conduto peritônio-vaginal à direita. Exame normalmente desnecessário. (T) = testículo.


COMO SE TRATA
Com o objetivo de evitar as complicações, por vezes fatais, a hérnia inguinal deve ser tratada cirurgicamente ao diagnóstico, independentemente da idade do paciente.

O preparo pré-operatório consiste na avaliação clínica cuidadosa, complementada com exames laboratoriais quando necessários. O hemograma e coagulograma são úteis na investigação de anemia e distúrbios da coagulação.

O tratamento consiste na dissecção, ligadura e ressecção do conduto peritônio vaginal (saco herniário) procedimento conhecido como herniorrafia inguinal. Devido a alta incidência de bilateralidade nas crianças pequenas, a maioria dos cirurgiões recomenda exploração cirúrgica contra-lateral mesmo que não haja clínica evidente de hérnia.

A indicação eletiva da herniorrafia inguinal permite, que a criança seja operada ambulatorialmente, recebendo alta no mesmo dia. Entretanto, recém nascidos prematuros com menos de 44 semanas corrigidas, devem permanecer internados por 24 horas, mesmo em indicação eletiva, pelo risco de desenvolverem apnéia.

A hérnia inguinal encarcerada deve ser submetida à cirurgia de urgência. Na presença de estrangulamento, pode ser necessário ressecção de alça e tratamento da peritonite e sepsis secundários a esta complicação.

Em casos selecionados, onde não haja sinais de sofrimento de alça, pode-se tentar a redução manual delicada na urgência e correção cirúrgica eletiva posteriormente.


HIDROCELE 


CONCEITO
Corresponde à presença de líquido, em quantidade exagerada, no interior da túnica vaginal. Apresenta quadro clínico variável, na dependência das características do conduto peritônio vaginal patente.

HIDROCELE COMUNICANTE
Consiste na persistência completa do conduto à semelhança da hérnia ínguino-escrotal. Devido ao fato do “colo” do conduto ser estreito ocorre apenas a entrada de líquido proveniente da cavidade peritoneal. O abaulamento da região escrotal é cístico e caracteriza-se pela variação de volume identificada sem dificuldade pelos pais (Fig 9).


Fig 9 – Tumoração cística em bolsa testicular a esquerda

Ao exame pode-se observar esvaziamento do conteúdo escrotal através de compressão delicada. A transiluminação pode ser útil na demonstração do conteúdo líquido (Fig 10).


Fig 10 – Transiluminação mostrando a natureza cística do conteúdo escrotal.

Como há comunicação entre a cavidade peritoneal e o escroto, a passagem de uma alça intestinal e seu encarceramento podem ser iminentes. Assim, impõe-se o tratamento cirúrgico ao diagnóstico, à semelhança da hérnia inguino-escrotal (Fig 11).


Fig 11 – Aspecto intra-operatório da hidrocele comunicante.

HIDROCELE NÃO COMUNICANTE
A reabsorção proximal incompleta do conduto resulta em uma túnica vaginal de exageradas proporções, com acúmulo de líquido produzido por seu próprio epitélio. Observa-se ao exame, aumento da bolsa testicular do lado comprometido, de consistência cística, cujo volume não varia ao longo do dia ou à manipulação.

A conduta pode ser expectante até o sexto mês de vida pois, em muitos casos, o líquido é absorvido espontaneamente e, além disso, não há risco de encarceramento de alça intestinal pois a túnica vaginal não se comunica com a cavidade peritonial.

CISTO DO CORDÃO ESPERMÁTICO
Nesta condição o conduto peritônio-vaginal sofre caprichosamente obliteração de suas porções proximal e distal, deixando pérvia e patente sua porção intermédia. O epitélio do cisto (mesotélio) produz líquido, promovendo o aparecimento de uma tumoração cística no canal inguinal. Ao exame há uma tumoração cística de limites definidos que não varia de volume à manipulação, localizada no canal inguinal ou nas proximidades do ânulo inguinal superficial (Fig 12). O correspondente no sexo feminino chama-se cisto de Nück que corresponde a uma tumoração cística no canal inguinal, com as mesmas características do cisto de cordão.


Fig 12 – Tumoração cística (C) no trajeto do cordão espermático e testículo (T) normalmente posicionado.

O tratamento é cirúrgico ao diagnóstico. Pode ter indicação cirúrgica de urgência se for impossível pelo exame clínico diferenciá-lo de hérnia encarcerada (Fig 13 e 14).


Fig 13 – Cisto de cordão (C) e cordão espermático (CE)


Fig 14 – Cisto de cordão (C) e cordão espermático (CE)

Na menina, o cisto que ocupa o canal inguinal e apresenta a mesma fisiopatologia recebe o nome de Cisto de Nück (Fig 16).


Fig 15 – Cisto de Nück. Aspecto intra-operatório.